À boleia
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À boleia


"A Seleção Nacional voltou a viajar ontem com uma comitiva de adeptos de alto coturno, oficializando em momento oportuno o fim da crise de valores, da falta de liderança e da perda de identidade que a afetavam há uns tempos. Com tão solidários apoiantes, até o sorumbático Gilberto Madaíl voltou a aparecer aos microfones, sorridente e prazenteiro, pronto para arrecadar os salamaleques e honrarias que o sistema, venerando e obrigado, houver por bem destinar-lhe para a reforma.

Indiferentes ao folclore, selecionador e jogadores aprestam-se a servir hoje ao país o resultado desejado com todo o profissionalismo e alguma sobranceria pelo regresso à sua intimidade dos padrinhos e afilhados da grande família da bola. Quando tudo se desmorona neste Jardim de contas de sumir e o pessimismo toma conta dos portugueses, sabe bem acender a pantalha, como se ligássemos a máquina do tempo e caíssemos outra vez no tempo dos bitaites, ao ver por lá desfilarem os grandes líderes do triunfalismo, inalando a fumaça dos havanos de quem paga as despesas e arrecada o dinheiro grosso.

Esta viagem à Dinamarca sugere que tudo vai bem no reino da bola: um presidente no seu posto, selecionador em estado de graça, jogadores bons, ricos e famosos, uma sequência de resultados sem precedentes. O cenário ideal para atrair apoios, para fazer amigos, para empolgar políticos. E no regresso, entre uns brindes e umas larachas lapidares, os últimos pormenores da divisão de poderes acabarão acertados e garantidos para mais dez campeonatos.

Agora que as eleições da Federação se apresentam decididas, antes de a opinião pública ter sequer conhecimento dos propósitos e orientações da futura liderança, para lá da desvenda avulsa de dois ou três nomes benignos, esta fulminante transição ofensiva do eixo dominante promete deixar de rastos por muitos e bons anos os paladinos da verdade desportiva que optaram por aderir também a este xito da modernidade, hipotecando para as calendas o nobre anseio de jogo limpo e transparente.

Como um golpe palaciano em democracia terceiro-mundista, a Liga apaga-se e a Federação recupera o protagonismo. A autoridade transfere-se e o poder torna-se opaco e sem escrutínio. Os clubes que, durante tantos anos, lutaram pela autonomia de um comando executivo autónomo na gestão do futebol-espetáculo, entregam-se agora, alegres e inconscientes, nos meandros dos jogos de influências e das interdependências políticas e regionalistas. E ainda aplaudem.

O futuro presidente da FPF deixa um lugar vazio na Liga que ninguém parece preocupado em preencher. Leva com ele os livros de faturas de Arbitragem, Disciplina e Justiça e isso sim é inquietante. Este inesperado, mas revelador, desfile de vaidades à boleia da Seleção demonstra quem são os poderosos que ainda põem e dispõem neste mundo. E quando se percebe a sua força, com uma capacidade de regeneração e desfaçatez sem limites, sejamos indulgentes para a capitulação de Benfica e Sporting, agarrados à boleia do imparável cavalo de Tróia que leva a impunidade de volta ao coração do futebol nacional: como não os podiam vencer, juntam-se a eles."


João Querido Manha, in Record



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