NOTA INICIAL 1 (pessoal): O facto de não haver por hábito destacar figuras dos clubes (não é só no Benfica) que não sejam presidentes da Direcção e atletas, com predominância dos futebolistas, obriga a esta nota inicial, mas espero que seja breve pois o objectivo é apenas um. Aproveitar esta efeméride para um Benfiquista escrever acerca de um seu presidente da mesa da Assembleia geral, embora não o tenha conhecido pessoalmente, pois quando ele faleceu (6 de Abril de 1965) o Benfiquista que escreverá essas linhas tinha quatro anos. Mas há registos familiares de que vivendo na Figueira da Foz já dizia ser do Benfica e "exigia" que a mãe lhe fizesse camisolas de lã vermelhas.
NOTA INICIAL 2 (institucional): Os presidentes da mesa da Assembleia geral são em qualquer clube personalidades destacadas quanto ao clubismo. E muito mais num clube de tradição democrática ininterrupta (1904 - 2014) como é a vida associativa do "Glorioso". Os nossos presidentes da mesa da Assembleia geral além de terem sempre "muito que fazer" (o carácter democrático obriga a inúmeras reuniões da Assembleia geral, incluindo as eleitorais) mas para além disso "funcionaram" muitos anos, mesmo décadas, como autênticos "Provedores dos associados". Eles são o presidente dos sócios, enquanto o presidente da Direcção é o presidente do Clube. Por isso durante muitos anos - nos 60 iniciais do "Glorioso" - os presidentes da mesa da Assembleia geral eram transversais às restantes presidências dos outros dois Órgãos Sociais. Num comparativo basta dizer que entre 1904 e 1964 o Benfica teve nove presidentes da mesa da Assembleia geral enquanto teve 20 presidentes da Direcção, ou seja, mais do dobro. Neste caso os "números dizem mesmo tudo"! (ver NOTA FINAL contendo um quadro com todas as presidências da mesa da Assembleia geral, que está no final para se poder avançar, desde já, para o texto de hoje).
Infância e adolescência (1895 - 1920)
Desde cedo que mostrou ser uma pessoa muito sociável, de agradável convívio, de visitar e receber amigos, como de escrever e registar notícias que considerava importantes para o seu futuro.
Crescendo numa família monárquica e convivendo de perto com grandes figuras públicas e políticas (o pai era um mediático juiz do Tribunal do Comércio de Lisboa) nunca renegou a sua formação monárquica e muito menos perdoou aos que a dilaceraram: os republicanos que cometeram o Regicídio (1908), que implantaram a República (1910) e que dirigiram Portugal (até 1926).
Aluno de excelência revelava-se aplicado, pontual e cosmopolita. Em 1911 o pai é desterrado para a Índia pelo Regime triunfante em 1910 com Cancella de Abreu a abdicar de tudo para acompanhar o pai que entretanto enviuvara, com Augusto órfão de mãe aos 15 anos. Perdeu o ano e só depois do regresso concluiria o ensino liceal.
Ingressa no Instituto Superior Técnico onde cursa engenharia civil e tem oportunidade de envolver-se em lutas académicas de oposição ao poder republicano utilizando uma divisa que o acompanhará até ao fim: «vencer pela Razão e não pela Força».
Com o eclodir da I Guerra Mundial é mobilizado partindo para França, onde vai "fazer a Guerra" entre 1917 e 1918. Não sem antes, com a sua irreverência - recusou-se a fazer o juramento militar segundo as regras republicanas - ter arranjado problemas acabando punido e detido. Em 1919, depois de terminada a Grande Guerra e regressar a Portugal, conclui o curso de engenharia. Mesmo com dois percalços - a Índia interrompeu-lhe o Liceu e a Grande Guerra a Engenharia - não impediu que fosse o melhor do seu ano no Liceu Pedro Nunes e no Instituto Superior Técnico.
Monárquico irreverente (1920 - 1935)
Depois de empregos como engenheiro civil camarário (Lisboa) e na Companhia Geral de Seguros, a sua capacidade de organização e orientação permitem a ascensão na Sociedade Estoril (Companhia dos Caminhos-de-Ferro de Cascais) como subdirector, entre 1923 e 1941. Entretanto em 1923 regista-se o seu casamento.
Enceta uma carreira profissional de sucesso, sempre interessado na vida política do país, incomodado com a instabilidade social, descalabro financeiro e insegurança pública dos últimos anos da I República, mas não se mostra entusiasmado com o golpe do 28 de Maio de 1926. «Generais Republicanos "heróis" da humilhação na I Guerra Mundial. Monarquia sim. Não o são? Não interessam». Mas a morte do estimado pai em 1931 tudo vai alterar. Subitamente a ligação familiar monárquica (os talassas) como que fica lassa e decide, para surpresa de familiares e amigos, aderir à União Nacional como forma de "corrigir os erros da I República" - talvez fosse mais ajustar contas em nome do pai.
Política: surpresa e lealdade (1935 - 1957)
Em 1933, com a promulgação da nova Constituição Política da República Portuguesa, plebiscitada em 19 de Março, nasce o Estado Novo e com ele a divisa "Tudo Pela Nação, Nada Contra a Nação".
Com alguns dos seus amigos - incluindo amizades do tempo do Liceu da Lapa (Pedro Nunes) - nos organismos do Estado Novo, Cancella de Abreu tem um percurso vertiginoso dentro do aparelho: da ausência de actividade política (até 1931) em 1935 já é deputado da União Nacional. E seria deputado na Assembleia Nacional em três Legislaturas: Primeira (1935 a 1938), Segunda (1938 a 1942) e depois, já muito a contragosto na Sexta (1953 a 1957). Entretanto entre 1944 e 1950 foi ministro: Obras Públicas e Comunicações (entre 1944 e 1947) e Interior (1947 a 1950).
No Benfica (1956 - 1964)
Depois dos dirigentes do "Glorioso" ficarem surpreendidos, em 1947, com a simpatia do Ministro pelo Benfica, pois geralmente os ministros eram sportinguistas, soube-se do facto de Augusto Cancella de Abreu "estar cansado da política portuguesa muito paroquial e pouco dinâmica para o seu gosto!" Cumpridor e leal continuou ligado ao poder na Sexta Legislatura (1953 a 1957) por pedidos insistentes do aparelho político do Estado Novo, mas revelava sinais de fadiga, advogava que o aparelho devia ser rejuvenescido e afirmava que se aceitou ser pela terceira vez deputado (não há duas sem três), não haveria uma quarta.
No Benfica com o presidente da mesa da Assembleia geral, António Ribeiro dos Reis em dificuldades físicas minado pela doença que seria fatal os dirigentes do Benfica entenderam que Augusto Cancella de Abreu ao abandonar os cargos políticos de nível superior reunia excelentes condições para suceder a Ribeiro dos Reis. Por isso, decidiram propor aos associados a candidatura de Cancella de Abreu, para completar os oito meses que restavam no mandato dos Órgãos Sociais tendo Ferreira Bogalho como presidente da Direcção. Augusto Cancella de Abreu revelou-se um Benfiquista de grande qualidade conseguindo ombrear com os presidentes que o antecederam e que, ao contrário dele, tinham um percurso longo dentro do Clube, alguns até como futebolistas, como Cosme Damião, Augusto da Fonseca, Ribeiro da Costa ou Ribeiro dos Reis.
Três presidentes da Direcção, oito vitórias eleitorais
Augusto Cancella de Abreu foi o homem certo, no tempo certo no lugar certo. Entrou pela "mão" de Bogalho, continuou com Maurício Vieira de Brito e saiu com o "delfim" deste, Fezas Vital. Ou seja esteve no período mais brilhante do Glorioso Futebol - o Bicampeonato Europeu. Nem vale a pena ir contabilizar campeonatos nacionais, Taças de Portugal e proezas como "dobradinhas" ou troféus particulares de prestígio. Para quem é Bicampeão Europeu tudo o resto é acessório.
Dirigiu 31 Assembleias gerais (pelo menos no plano teórico e certamente esteve em todas, apesar de apenas ter contabilizado o número e não sei se por algum motivo - particular ou físico - esteve ausente). Entre essas 31 houve oito eleitorais, pois as eleições para os Órgãos Sociais eram anuais. No período em que foi presidente da mesa da Assembleia geral dotou o Clube de Estatutos, os de 1958. Viu nascer e morrer um projecto de poder intermédio, a Assembleia dos Representantes, condenada ao fracasso num clube de Liberdade como é o Benfica. Instituiu a Medalha de Honra da Assembleia Geral para Homenagear os Campeões Europeus (1961) e Bicampeões Europeus (1962).
Que contributo?
Augusto Cancella de Abreu conduziu com mestria as reuniões da Assembleia geral ou não tivesse ele ampla experiência como deputado da Assembleia Nacional, na sexta Legislatura dirigiu mesmo algumas sessões plenárias como vice-presidente.
Dotado de brilhante capacidade intelectual e grande conhecedor da realidade social e económica do País (como poucos) soube adaptar BEM os Estatutos de 1958 à realidade social de Portugal. Que é o mais importante em qualquer revisão estatutária.
Foi provavelmente - embora outros que lhe sucederam tenham honrado o importante cargo - o último de uma gesta de presidentes da mesa da Assembleia geral que sabiam ser o baluarte dos anseios e desejos da massa associativa na sua essência. Na linha de Mascarenhas de Melo, Cosme Damião, Augusto da Fonseca, Ribeiro da Costa ou Ribeiro dos Reis, por exemplo.
Foi agraciado com a distinção máxima do Clube, a "Águia de Ouro". Melhor do que eu poderia escrever ou exprimir deixo uma fotografia de Roland de Oliveira e uma digitalização de um texto do «Relatório e Contas da Direcção e Parecer do Conselho Fiscal do Clube referente a 1964 (páginas 41 e 42).
Cancella de Abreu um Benfiquista de sempre. De todos os tempos.
Alberto Miguéns
NOTA FINAL: Os presidentes da mesa da Assembleia geral têm sido, e foram-no até 1975 e depois desta data "houve dias", intensamente Benfiquistas: o paradigma do Benfiquismo. Personalidades integras em termos sociais e associativos. Personalidades nas quais os associados reconheciam lealdade e valor para serem seus superiores representantes junto dos Órgãos Sociais.
A presidência da mesa da Assembleia geral do "Glorioso" ficou desde logo marcada por uma enorme personalidade Benfiquista e Benemérito da cidade de Lisboa: Doutor João Carlos Mascarenhas de Melo. Associado dedicado, presidente da mesa da Assembleia geral entre 1908 e 1931 e Águia de Ouro em 6 de Setembro de 1931. Médico ilustre serviu todos com igual grandeza, sem distinção de classes ou poder económico, mesmo SEM NENHUM poder económico, ou seja, até profissionalmente foi "à Benfica", enquanto viveu, até 1949, desde o popular bairro de Benfica até aos arrabaldes para lá da Porcalhota e Venteira, actual Amadora.
Data Eleições | Presidentes da Mesa da Assembleia Geral |
28.06.1908 | (1) Dr. João Carlos Mascarenhas de Melo |
26.02.1909 | “ |
02.02.1910 | “ |
26.03.1911 | “ |
09.07.1911 | “ |
31.03.1912 | “ |
05.12.1912 | “ |
23.06.1913 | “ |
13.08.1914 | “ |
29.08.1915 | “ |
15.07.1916 | “ |
07.10.1916 | “ |
22.07.1917 | “ |
28.07.1918 | “ |
19.09.1919 | “ |
22.09.1920 | “ |
10.09.1921 | “ |
04.02.1923 | “ |
27.07.1924 | “ |
27.09.1925 | “ |
05.08.1926 | “ |
25.08.1926 | “ |
31.07.1927 | “ |
29.07.1928 | “ |
28.07.1929 | “ |
18.07.1930 | “ |
15.08.1930 | “ |
06.09.1931 | Cosme Damião |
07.08.1932 | “ |
20.08.1933 | “ |
04.09.1934 | “ |
15.10.1935 | Dr. Augusto da Fonseca |
04.11.1936 | “ |
25.07.1937 | “ |
31.07.1938 | “ |
01.08.1939 | Cap. Júlio Ribeiro da Costa |
31.08.1940 | Cap. António Ribeiro dos Reis |
06.09.1941 | “ |
27.08.1942 | “ |
26.08.1943 | “ |
18.01.1945 | Eng.º Alfredo Silva Ávila de Melo |
19.01.1946 | Brig. João Tamagnini Barbosa |
25.01.1947 | Mário de Noronha |
30.01.1948 | Major António Ribeiro dos Reis |
29.01.1949 | Ten-Cor “ |
04.02.1950 | “ |
17.02.1951 | “ |
15.03.1952 | “ |
31.01.1953 | “ |
30.01.1954 | “ |
15.03.1955 | “ |
18.02.1956 | (2) “ |
27.07.1956 | (3) Eng.º Augusto Cancella de Abreu |
30.03.1957 | “ |
05.04.1958 | “ |
23.05.1959 | “ |
30.04.1960 | “ |
29.04.1961 | “ |
31.03.1962 | “ |
25.05.1963 | “ |
26.03.1964 | Prof. Lima Basto |
08.05.1965 | Dr. Sidónio Rito |
17.06.1966 | “ |
03.07.1967 | Prof. José Maria Gaspar |
12.04.1969 | Justino Pinheiro Machado |
03.07.1971 | Dr. Mário de Oliveira |
31.03.1973 | “ |
24.06.1975 | Dr. Martins Canaverde |
26.05.1977 | Dr. Adriano Afonso |
10.05.1979 | “ |
29.05.1981 | Dr. Araújo e Sá |
25.03.1983 | Prof. Martins da Cruz |
29.03.1985 | “ |
27.03.1987 | Dr. Adriano Afonso |
31.03.1989 | “ |
24.04.1992 | “ |
07.01.1994 | Dr. António Martinez |
05.06.1996 | Dr. José António Reis Martinez |
31.10.1997 | Dr. António Roman Navarro |
27.10.2000 | Dr. Paulo Pitta e Cunha |
31.10.2003 | Dr. Tinoco de Faria |
27.10.2006 | Dr. Manuel Vilarinho |
03.07.2009 | Dr. Luís Filipe Nazaré |
26.10.2012 | “ |
28.10.2016 | Previsão pelos prazos estatutários |
NOTAS: (1) A estrutura directiva do Sport Lisboa compunha-se apenas de uma Direcção, enquanto a do Sport Benfica era composta pelos três Órgãos Sociais. Aquando da junção dos dois emblemas em 13 de Setembro de 1908 foi decidido manter a estrutura desportiva e tradição do "gloriosíssimo" Sport Lisboa, mas manter a estrutura dirigente do Sport Benfica que servia melhor os interesses de expansão do Clube; (2) Por motivos de saúde António Ribeiro dos Reis pediu a demissão em 4 de Julho de 1956; (3) Eleição intercalar para a presidência da mesa da assembleia geral.