O meu Eusébio
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O meu Eusébio


"É o Eusébio do sangue
Dois dias depois, é ainda mais difícil escrever sobre Eusébio.
Escrever para elogiá-lo como jogador ou como homem soa redundante: já foi tudo dito, e quase tudo bem. Escrever para exigir a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão também: toda a gente o fez já, ademais com justiça - e o precedente de Amália torna o desbloqueamento da operação numa formalidade burocrática.
Escrever para quê, então? Para lamentar as intervenções do dr. Soares, de Mozer, de tantos outros que, no meio da cacofonia em que talvez fosse inevitável a morte do Pantera Negra tornar-se, usaram o microfone para violentar o mito, mesmo que com a melhor das intenções? Escrever para repreender as vozes dissonantes que não se coibiram de aproveitar a morte de um grande para ajustar contas com recalcamentos históricos, para dirimir comparações estéreis, para sobrepor a espuma dos clubismos e a raiva dos resultados e a mágoa dos penáltis e a pequenez de tudo aquilo que nos separa uns dos outros à grandiosidade daquilo que nos une?
Confesso-me incapaz. Sou um cronista das pequenas coisas: das entrelinhas e dos desperdícios, dos equívocos e das partes gagas. Nenhuma crónica minha faria justiça a Eusébio. E talvez alguma crónica de outrem possa fazer justiça àquilo que Eusébio foi, mas até ao momento em que escrevo também ainda não li uma só que faça justiça àquilo que ele significa.
Aquilo que um homem significa é aquilo que ele será sempre. E aquilo que Eusébio será, se a proximidade efectivamente nos tolda a visão, fica aí expresso mundo fora: nas homenagens, nas manchetes, nos lutos e nas palavras (sim, nas palavras também) que lhe deixam personalidades, clubes, instituições, adeptos anónimos. 
O resto, que não aquilo que os homens significam, é fragilidade humana apenas: a saúde e a doença, os semblantes e os cheiros, as rotinas e os objectos, os fracassos, os sucessos e até as estatísticas. Todos nascemos, vivemos e morremos. Vimos do pó e ao pó regressamos. É o que se realiza nesse fugaz instante que só nós podemos tornar possível que faz a diferença.
Eusébio foi buscar a bola dentro da baliza e continuou a trazê-la de volta para o grande círculo, até que enfim se operasse a reviravolta. Já o haviam feito marinheiros, vice-reis, restauradores, até poetas. Mas nenhum deles aparecera na televisão.
Até nessa coincidência Eusébio foi um milagre. Nós reconhecemo-lo se quisermos. Os milagres não precisam de reconhecimento para continuarem milagres.
Afinal, sempre escrevi. E, como previsto, fica aquém do seu objeto. Bom sinal."

Joel Neto, in O Jogo



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