O nojo e a falta dele
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O nojo e a falta dele


"Inimputável, o Gaseificado tece considerações neurasténicas sobre a vergonha, que é coisa que não tem. Fala, desesperado para que o ouçam, mas a sua voz é entaramelada de mentiras e saliva velha. Os seus acólitos, viciados no jogo e em prostitutas, riem-se mais pela força do hábito do que pela obrigação de untar o chefe. Há já muito pouca gente que lhe preste atenção, tão dementes são as suas frases, tão tacanho é o seu raciocínio. Ainda assim, o Gaseificado abre e fecha a boca como um peixe fora de água, largando chalaças pobres enquanto cospe. O mundo está do avesso e ele sabe-o. Lançar um saco de pedras de calçada do alto de um viaduto sobre um carro em movimento não é crime. Os autores da façanha riem-se em casa quando a noticia passa na televisão. Terão a sua recompensa. Inepta, a polícia ri-se também: há lugares do país onde ela não foi criada para perseguir celerados e sim para proteger os mentores de tais façanhas.
Perguntem-lhes, por exemplo, sobre um fotógrafo que foi atropelado. Houve investigação? Claro que não! Que importância tem tal episódio? Perguntem-lhes pelos jornalistas agredidos, um até em directo na televisão. Podem perguntar. Eles não respondem. Perguntem-lhes por aqueles que atiraram bolas de golfe e pedras para dentro de um relvado. E, de novo, o silêncio. O Gaseificado é mais do que inimputável, é protegido por quem tinha obrigação de nos proteger dele. Os polícias tapam os ouvidos, fecham os olhos, calam as bocas como os macaquinhos da história. Os árbitros às vezes estão de cócoras, outras vezes rastejam: compram-se facilmente a preço da chuva, graças a fruta e café e chocolate e, se calhar, até a um carro para o chefe. Os juízes vergam a cerviz, sujando miseravelmente a nobreza da profissão em troca de viagens e bilhetes para o camarote do figurão. Já não se trata de vergonha, trata-se de nojo. E tudo isto mete nojo. Muito nojo!"

Afonso de Melo, in O Benfica



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