O último brilho da Pérola Negra
Benfica

O último brilho da Pérola Negra


"Espírito Santo disse adeus ao Futebol no dia 8 de Dezembro de 1949. No Campo Grande o povo juntou-se em sua homenagem numa festa modesta porque ele, modesto, assim o quis. A Académica concedeu-lhe a capa preta; Peyroteo, seu amigo, não faltou.

Parece que agora há uma raça de Espírtos Santos maus.
Estejam descansados: este de aqui vos falo é um Espírito Santo bom. Mesmo muito BOM, assim mesmo com maiúsculas.
Guilherme Espírito Santo.
Sejamos rigorosos: Guilherme Santana Graça Espírito Santo. Querem lá ver nome mais abençoado?
«Era um fantástico cavalheiro dentro do campo», diria dele Ribeiro dos Reis.
Nasceu em Lisboa no dia 30 de Outubro de 1919, mas eu vou gastar estas linhas que põem semanalmente à minha disposição com tão supimpa simpatia, para falar sobretudo do dia 8 de Dezembro de 1949, dia da Imaculada Conceição, Padroeira de Portugal. Querem lá ver dia mais abençoado?
E era o dia da despedida.
Espírito Santo abandonava os relvados (mas não as pistas de atletismo, logo ele que foi recordista do salto em altura, do salto em comprimento e do triplo-salto) e tinha, no Campo Grande, a sua merecida festa de homenagem.
Volto a Ribeiro dos Reis: «O negrito que um dia apareceu modestamente na sede do Benfica, tornou-se um atleta de excepcionais qualidades, bem merece a festa que teve. Talvez até uma festa demasiado singela para um desportista que atingiu no nosso País um lugar de eleição. Mas, Espírito Santo, que apareceu modestamente, modestamente quis sair».
Os seus pais eram angolanos e voltaram a Angola nos primórdios da sua infância. Dizem que o pequeno Guilherme se fascinara pelos maços de tabaco Benfica que traziam imagens dos jogadores da época, e por isso tratou de jogar no Benfica de Luanda antes de regressar a Lisboa. Ele próprio contou um dia: «Sou do Benfica desde os três anos. Havia uns maços de tabaco com figura dos atletas e eu fascinei-me pelo Vìtor Silva». Quem diria? Malhas que a inocência teve...
Depois esteve no Sport Lisboa e Benfica de 1936 a 1950. Uma vida.
Chamaram-lhe «A Pérola Negra».
Antes de voltar ao abençoado 8 de Dezembro de 1949, faço uma paragem no dia 8 de Maio do mesmíssimo ano.
O Benfica recebe o Marítimo para a Taça de Portugal e ganha facilmente por um daqueles resultados que ficaram congelados na pré-história do Futebol: 9-3.
Guilherme Espírito Santo marca quatro desses nove.
O último desses quatro será o seu último com a camisola do Benfica.
No dia 13 de Novembro, em Elvas, fará o seu último jogo. Derrota por 0-1. Nem sempre o Destino respeita quem lhe faz frente.
O povo aplaude o rapaz de virtudes
No Campo Grande a festa reparte-se.
Primeiro uma disputa entre o Sport Lisboa e Saudade e uma equipa de antigos jogadores do Sporting.
Do lado 'encarnado', gente como Martins, Pinho, Valadas, Gustavo, Albino e Vítor Silva, que fora o ídolo de Espírito Santo e que, como acontece nas grandes lendas, viria a substituir no primeiro «team» do Benfica.
Do lado verde e branco, alinhavam entre outros Cardoso, Dyson, Jurado, Faustino, Paciência e Peyroteo, seu bom amigo. E até um árbitro, calcule-se! Borques Leal.
Ninguém levava a peito. Até porque o árbitro foi Travassos...
A imprensa entretinha-se a efabular sobre as diferenças do Futebol de um e de outro tempo, chão que deu uvas como sabemos, comparando as qualidades dos veteranos com as dos da época, gastando mais papel com o «prato principal», o desafio que opunha as equipas principais do Benfica e da Académica.
E se o Benfica dos velhotes perdera por 0-1, o Benfica da malta mais nova tratou de dar 7-1 aos estudantes, jogando Espírito Santo durante toda a primeira parte no lugar que agora era de Julinho, mas sem marcar o golito que cairia nessa tarde como a ginja no bico do melro.
Foi bonita a festa!
Em sinal de respeito e camaradagem, os academistas cobriram os ombros do homenageado com a capa preta coimbrã.
E como ele merecia tamanha honra. Guilherme Espírito Santo foi uma das figuras mais resplandecentes do desporto em Portugal. De todos os tempos! O seu recorde nacional do salto em altura demorou vinte anos a ser batido. Além da agilidade extraordinária que exibia no Atletismo e no Futebol, foi um excelente jogador de Ténis, modalidade que praticou até à provecta idade de 85 anos.
Fernando Peyroteo, seu émulo, não se coibiu de o considerar, no livro em que registou as suas memórias, um jogador muito superior a si próprio em termos técnicos. Avançado fino, de velocidade incrível, rapidamente se destacou pela quantidade de golos marcados e afirmou definitivamente uma ideia de multirracialidade no Benfica, algo que marcaria profundamente a história do Clube nos anos que se seguiram de imposição internacional.
De novo no Campo Grande, o povo aplaude um rapaz que era tido como um espelho de virtudes. Alguém que marcara uma época no Futebol português. Há ramos de flores e prendas variadas.
Veio a público que fora Espírito Santo a solicitar à Académica e a Peyroteo ajuda na sua despedida.
Quanto ao Benfica, dedicou-lhe um abraço íntimo: «Espírito Santo, jogador de Futebol e atleta valoroso, disciplinado e correcto, teve hoje no campo do seu Clube - Benfica - a homenagem que merece pelas suas invulgares qualidades. Festa de certo medo modesta, até porque ele próprio assim o quis, revestiu-se do significado que sempre têm as iniciativas a que o Benfica se liga. O tempo ajudou o popular jogador. E a colaboração dos adeptos do seu Clube foi mais simpática e expressiva que ele poderia desejar».
Fazia sol nesse 8 de Dezembro de 1949.
A Pérola Negra ainda brilhava..."

Afonso de Melo, in O Benfica



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