Benfica
A modéstia do senhor Otaviano
"Passou por Lisboa em 1953, comandando o America do Rio de Janeiro. No ano seguinte chegava ao Futebol português e ao Benfica para revolucionar para sempre o jogo entre nós...
Pois é, o homem chamava-se Otaviano e poucos se recordarão disso. Otaviano Martins Glória, nascido no Rio de Janeiro no dia 9 de Janeiro de 1917 (não falta muito para os cem anos da sua chegada ao mundo, o Benfica bem lhe deve uma homenagem!), neto de um português dos Açores e de outro de Vila Nova de Gaia.
Chamavam-lhe Otto e Otto ficou. Não sei o porquê do Otto com dois tês, só por simpatias germânicas, sendo Otaviano deveria ser Oto, apenas Oto, sem mais floreados mais próprios do grande e farfalhudo bigodinho do kaiser Guilherme II do que o bigodinho à Errol Flyn do bom e modesto Otaviano.
Otto Glória tinha estado em glória em Lisboa na visita do America do Rio de Janeiro. No Brasil há muitos Américas, coisa de pouca monta já que o país se situa na América, apesar de sulista e muito pouco elitista.
Antes de chegar ao Clube 'encarnado' e mudar para sempre a face do futebol em Portugal, trazendo consigo uma visão profissional de um desporto até aí considerado entre nós, orgulhosamente, como profundamente amador, Otto Glória esteve em Lisboa. A data do acontecimento é clara: 30 de Junho de 1953.
Ninguém pode dizer que essa sua passagem por Lisboa não alterou a sua vida e a vida do Benfica.
O Futebol é muitas vezes feito de encontros e reencontros.
Nesse 30 de Junho, as Salésias encheram-se de gente para ver o virtuosismo anunciado dos brasileiros do America Football Club, assim muito à inglesa como era moda à época, e segundo as crónicas ninguém saiu de lá defraudado.
Cabe dizer que este America, sem acento no E, foi o primeiro dos muitos Americas que entretanto surgiram como cogumelos por todo o Brasil, copiando-lhe o nome e o equipamento, muito curiosamente composto por camisolas vermelhas, calções brancos e meias vermelhas.
Fundado a 18 de Setembro de 1904, por pouco não é gémeo do seu adversário dessa tarde salesiana.
Golos de pura mestria!
Mas, se quase gémeos em idade, bem separados no futebol esparramado sobre o terreno. «Alguns lances do conjunto aprimorado resultaram de malabarismos férteis em argúcia e em imaginação, e de proezas de carácter individual, tão do agrado de grande nação sul-americana. Assim se observava um conjunto de onde resultavam o imprevisto, a graça e a subtileza. A preparação atlética, a descontracção muscular e a arte nas fintas e no domínio da bola favoreciam iniludivelmente os brasileiros».
Por isso venceram. Sem espinhas: 3-1.
Sempre se disse, ao longo da história, que «seu» Otaviano, antigo praticante de basquetebol, trouxeram para as equipas que treinava muitos dos movimentos defensivos utilizados nesse desporto. A verdade é que os seus conjunto apresentavam uma moderníssima exploração dos métodos de pressão sem bola que sufocavam adversários incautos.
Ora, veja-se: «Outro remédio, não tinham os benfiquistas do que fazer figura de discípulos animosos e até por vezes atrevidos nos esquemas ofensivos. Quando isso sucedia, os defesas e médios visitantes escalonavam-se numa barreira cerrada e eficaz, em auxílio estreito ao guarda-redes, um homem robusto, mas prodigiosamente hábil e seguro chamado Julião».
As equipas apresentaram:
BENFICA - Bastos; Artur e Fernandes; Moreira (depois Caiado), Félix e Ângelo; Rosário (depois Zezinho), Arsénio, Águas, Vieira e Rogério.
AMERICA - Julião; Joe e Osmar; Agnelo (depois Ivan), Osvaldo e Élio; Carmelino, Wassil (depois Maneco), Leônidas, João Carlos e Ferreira.
Dizia-se que Otto Glória era capaz de explosões de mau feitio. Mas a exibição do America nessa tarde nas Salésias convenceu os dirigentes do Benfica de que seria o homem ideal para operar a revolução necessária para encarar o futuro com optimismo.
Nos últimos cinco minutos da primeira parte, dois primeiros de execução de Leônidas (não confundir com o outro Leônidas da Silva, a «Pérola Negra», inventor do pontapé de bicicleta, garantem os brasileiros) e de Wassil, davam vantagem segura aos brasileiros de Otto. Dois toques simples, depois de habilíssimo domínio de bola e de série de fintas desconcertantes.
Era mesmo daquilo que o povo estava à espera. Era mesmo daquilo que povo queria. Estralejaram aplausos!
O terceiro golo do America foi apontado pelo pequeno Ferreira num pontapé quase sem ângulo que fez a bola descrever uma parabólica impressionante.
Depois, como lhes está no sangue, resolveram dar baile. Não estiveram os lisboetas pelos ajustes e lançaram um grito de revolta. Falharam um «penalty» por intermédio de Artur e reduzem o resultado com um golo de supetão de Rogério.
As coisas equilibram-se. Mas não há tempo para muito mais. Otaviano Martins Glória deixa uma imagem de competência em Lisboa com a força de um estandarte na batalha de Aljubarrota.
Não tardará a voltar. Para ficar, «besta ou bestial», conforme ganhava ou perdia, mas português como poucos brasileiros alguma vez o foram."
Afonso de Melo, in O Benfica
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