Benfica
As feridas verdes queimavam como sóis...
"Às cinco horas em ponto da tarde, como escrevia Garcia Lorca, o adversário estava em agonia. Havia um céu claro sobre a Luz desde o momento em que o Benfica começou a destruir o seu rival com uma vitória que não se esquece: 5-1!
Desta vez, se não vos incomodo ou aborreço, faço tenções de recuar ao dia 27 de Dezembro de 1970, ainda a rescender o Natal mas com um solzinho acolhedor a brilhar sobre a Lisboa de então, ainda muito paradinha no tempo, benza-a Deus, mas com outras virtudes que nos deixam saudades não fôssemos nós um povo tão dado a elas... Às saudades, entenda-se.
Era dia de Benfica-Sporting, o povo foi em romaria até à Luz, de bandeirinha e cachecol, buzinas e almofadinhas. os chapéus eram vendidos ao desbarato, daqueles de cartão branco e elástico pendurado, em cone como dos dos chineses que à época não eram os que agora por cá habitam.
Foi de truz!
Para o Benfica, como está bem de ver. Quando ao 'leão', parecia que pisava grude.
Resultado duro: 5-1.
E Damas defendia tudo, até mosquitos. Dizem que foi dele e grande mérito de uma derrota tão escassa. O «Charuto» voava de um lado para o outro parando bolas disparadas a torto e a direito pela esfomeada linha avançada do Benfica.
Fernando Vaz, o treinador 'leonino', decidira-se por marcações homem-a-homem no meio-campo que tinham muito de sonoras mas zero de eficácia: Tomé/Simões - Manaca/Graça.
Soavam no ouvido, sem dúvidas. Foram desgraçadas: igualmente indubitável.
O árbitro era do Porto: Fernando do Leite.
O Benfica jogou com: José Henrique; Malta da Silva, Humberto Coelho, Zeca e Adolfo; Matine e Jaime Graça; Nené, Artur Jorge, Eusébio e Simões.
E o Sporting? Pois bem, entrou assim: Damas; Pedro Gomes, Alexandre Baptista, José Carlos e Hilário; Tomé e Manaca; Nélson Lourenço, Peres e Dinis.
Nos segundo tempo, Marinho substituiu Lourenço e Chico entrou para o lugar de Peres.
Gente fina de uma lado e do outro. Gente finíssima!
Aos 10 minutos já Damas fora Damas uma e outra e outra vez. Mágico Damas de camisola negra, elegante como um gato, tranquilo como um cavalheiro inglês.
Tantas vezes almoçámos e conversámos horas a fio no «Manel Caçador», ali ao Areeiro. E de todas as vezes o ouvi falar do seu ídolo, Carlos Gomes.
Até que o Carlos Gomes também apareceu e as histórias jorraram sobre a mesa com o volume das cataratas do Niagara.
É pena que os protagonistas do Futebol tenham deixado de ser os jogadores. É pena que quem tem tanto para contar tenha sido afastado das páginas dos jornais cada vez mais entregues à indigência.
Não percamos, no entanto, o fio à meada.
As papoilas brilham ao sol!
Sob o sol de Dezembro, as papoilas brilhavam de vermelho vivo.
Eusébio e Artur Jorge estão endiabrados. São os senhores da bola e do jogo.
Tomé rasteira Eusébio dentro da grande área do Sporting, mas o árbitro faz vista grossa, não se compromete.
Quando Eusébio fez o 1-0, pelo rondar dos 18 minutos, já podia muito bem ser o 2-0 ou o 3-0 tal o atarantamento da dupla de centrais sportinguista.
O público delirava. Era um Benfica à Benfica. Terrível, assustador, imparável!
Se Fernando Vaz apostava em marcações individuais - cá atrás José Carlos à coca de Eusébio e o grande Alexandre Baptista à espera de Artur Jorge -, Jimmy Hagan trocou-lhe as voltas com voltinhas sem descanso: Eusébio e Artur Jorge não paravam quedos um segundo e mandavam ás malvas a férrea pretensão dos seus adversários directos. Quem os agarrava? Ou melhor, agarrar até agarravam, mas agarravam mesmo, pelos calções, pelas camisolas, um nunca mais acabar de faltas em lugares perigosos, verdadeiramente decisivos.
Nas pontas do ataque, direita e esquerda. Nené e Simões. Que azougue! Que vertigem!
Tornava-se difícil assistir ao jogo sentado nas velhinhas bancadas de cimento. Toda a gente se levantava a toda a hora, adivinhando golos ou jogadas inesquecíveis.
Meia-hora apenas decorrida, e eis o segundo golo. Por Artur Jorge, simples eficácia a culminar a arte.
Damas está solitário como poucas vezes na sua carreira. Dá a sensação que, por vezes, joga sozinho contra dez furibundos diabos de vermelho vestidos. O outro está lá no fim do campo, posto invejavelmente em sossego, e chamava-se José Henrique.
Entre golos falhados e defesas do «keeper» garboso, chega o Benfica ao 4-0. Por Nené, num remate fulminante, e novamente por Artur Jorge.
A voragem vermelha amansa. A vitória é gorda e não sofre discussão. O ritmo do jogo abranda, a bola serve de recreação, os avançados do campeão parecem satisfeitos.
Mas, de repente, num lance anódino, Humberto Coelho corta a iniciativa do Sporting com a mão dentro da grande área. José Carlos chuta o «penalty» incontroverso. O único remate dos leões até então transforma-se em golo.
Ah! Eis que a inquietação regressa ao peito dos homens das camisolas rubras. Recebem o golpe como uma afronta e atiram-se de novo sobre o seu opositor com sede de vingança. Simões força pelo corredor que alarga à custa de dribles; centra e tudo é simples como uma tarde de sol em pleno Inverno: golo de Artur Jorge.
Minuto último de um jogo único! As almofadas tão atiradas para o relvado como chapéus na glória de toureiro em arena monumental.
Cinco horas em ponto da tarde, como no poema de Lorca.
E as feridas verdes queimavam como sóis..."
Afonso de Melo, in O Benfica
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