Da Suécia à Dinamarca só a memória é curta...
Benfica

Da Suécia à Dinamarca só a memória é curta...


"Lembro-me de 1981. E de 1977. Sempre em Outubro. No Estádio da Luz. Dois golos de Pietra. Um de cabeça, e outro de «penalty»; um pela selecção nacional, outro pelo Benfica. Como se fosse um avançado-centro.

Com sua licença, prezado leitor, hoje por aqui vai passar o Pietra. Minervino José Lopes Pietra: 10 anos como jogador do Benfica. Pau para toda a obra: vi-o jogar a defesa-direito e a defesa-esquerdo, a trinco e até a avançado quando teve de ser, e já lá vamos não tarda.
Tenho-o como um bom amigo. Muitos e muitos anos de grandes conversas, algumas delas no saudoso António, da Ajuda, com o Eusébio também.
Vou à arca das memórias, e há jogos inesquecíveis. Do Pietra, claro está. Um deles pela selecção nacional, no Estádio da Luz, frente à Suécia. Dia 14 de Outubro, no Estádio da Luz. Estive lá: eu e mais uns 70 mil. Portugal lutava para se qualificar para o Campeonato do Mundo de 1982, em Espanha, e falhou redondamente. Os apurados seriam a Escócia e a Irlanda do Norte. Os suecos, que visitaram Lisboa já sem hipóteses, instalaram-se em Tróia nos dias que antecederam o encontro, aproveitando uma réstia de sol ocidental e a tranquilidade arenosa da península. Os jornais bateram na tecla: se Portugal trabalhava para atravessar a fronteira no mês de Junho que e seguiria, a Suécia ia a banhos. Valeram os banhos: a Suécia ganhou por 2-1, obrigando a Equipa-de-Todos-Nós a ter de vencer o jogo seguinte, em Israel, para continuar a alimentar ténues e quase invisíveis esperanças. Debalde: nova derrota, desta vez por humilhantes 1-4.
Mas vamos ao Pietra! Jogou no lado esquerdo de uma defesa que contou com Gabriel, Humberto Coelho e Eurico. Bento foi o guarda-redes, mas saiu por lesão ao intervalo, entrando Amaral. Chalana só durou 15 minutos, dando o lugar a Costa. E Juca, o seleccionador, foi dizimado pela crítica por ter deixado à margem da partida os artistas Alves e Oliveira. Aos 39 minutos, os suecos ganharam vantagem por Larsson, Nervos na Luz. Era fundamental uma vitória, e eis que ela se escapava por entre os dedos como a fina areia que brilha nas praias de Tróia ao Carvalhal. Depois houve fé. O público tornou-se feroz. Numa equipa que contava ainda com Shéu e Carlos Manuel, Romeu, Nené e Jordão, Pietra foi enorme. Tinha um estilo único: meias em baixo, cabelo crespo, bigode imponente. Varreu corredores, lançou-se sobre os enormes escandinavos como a alma de um desesperado, levantou-se nas alturas para, aos 74 minutos, cabecear na grande área de Thomas Ravelli a bola centrada por Gabriel que dava o empate português. Lembro-me bem: houve uma explosão por todo o estádio. Uma explosão de crença. Portugal atirou-se para a frente e, por momentos, tudo parecia estar exactamente no lugar em que deveria estar. Engano. A um minuto do final, um pontapé de Persson silenciou piramidal, todos podíamos ouvir o bater do enorme coração do Pietra.

Avançado-centro em Copenhaga
Quatro anos antes, também em Outubro, no dia 19, estive igualmente no Estádio da Luz. Gosto de demandar aos estádios em dias ou noites de futebol. Em Portugal, em Inglaterra, no Brasil ou na Índia. Por todo o mundo procuro o futebol ao vivo, palpitante, longe do sofá e do rectângulo da televisão pelo qual se teima em perseguir apenas a bola, fugindo aos sons e às sensações que se entranham nas memórias.
O Benfica jogava para a Taça dos Campeões com o BK 1903, ou BK de Copenhaga, como o denominavam uns e outros. Boldklubben 1903 de nome original. Em 192 fundiu-se como o Kjobenhavns Boldlub, o KB, e deu lugar ao actual FC Copenhaga.
Eram os oitavos-de-final. Na primeira eliminatória, o Benfica afastara o Torpedo de Moscovo com vitória no desempate em grandes penalidades, na segunda «mão», em Moscovo, depois de dois irritantes zero-a-zero.
Bento foi a figura desse duplo confronto. Pietra seria a figura do segundo duplo confronto.
O jogo da Luz não me deixou grandes recordações. E a memória ficou curta. Foi uma hora e meia monótona. Era um Benfica à Mortimere: regular, mas não espantoso. Apesar de ter um trio de ataque de luxo, com Chalana, Nené e Vítor Baptista.lembro-me de Vítor Baptista sair de cabeça rachada (entrando Celso para o seu lugar) e de Toni, o «capitão», jogar no centro do terreno, com José Luís sobre a direita e Pietra sobre a esquerda. De Bastos Lopes ser o defesa-direito, com Humberto Coelho e Eurico ao meio e Alberto na esquerda. Era um Benfica em renovação, com Vítor Martins lesionado.
No início do segundo tempo, um remate de Alberto bateu no braço de um defesa dinamarquês. Pietra adiantou-se. Chutou e o guarda-redes segui a bola com o braço mas sem lhe chegar. Vitória por 1-0 que deveria ser suficiente perante tão medíocre adversário.
Em Copenhaga, quinze dias mais tarde, o jogo foi duro e feio. Mortimore fez alinhar quase o mesmo onze, apenas com Vítor Martins no lugar de Nené. Os primeiros vinte minutos dos encarnados prometeram uma vitória fácil, mas ela foi árdua e árida como os Invernos do norte da Europa. A violência espalhou-se pelo relvado. Vítor Martins saiu lesionado para entrar Shéu. Mais tarde seria José Luís a vítima, entrando Pereirinha. Entretanto, aos cinco minutos da segunda parte, o extremo-direito do Benfica arranca em velocidade levando atrás três adversários; centra com primor da linha de fundo para a área dinamarquesa onde surge Pietra a saltar mais alto do que os centrais e a fazer mais alto do que os centrais e a fazer o golo único e definitivo. 1-0 mais 1-0: duas vezes Pietra. Como se fosse avançado-centro. Escreviam os críticos que o futebol dos campeões nacionais não tinha qualidade para enfrentar as grandes equipas do continente. Tinham razão: nos quartos-de-final frente ao Liverpool, que nesse ano conquistou a sua segunda Taça dos Campeões, foi um descalabro.
Em Lisboa, no jogo a primeira «mão», chovia-que-Deus-a-dava. Tempo bom para patos. E para ingleses. O Pietra esteve lá. E eu também. O primeiro Benfica-Liverpool de uma séria que viria a tornar-se clássica. Sairá um destes dias do baú inesgotável das lembranças. E ocupará uma página como esta."

Afonso de Melo, in O Benfica



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