A grande barraca da cidade das fadas
Benfica

A grande barraca da cidade das fadas


"A estreia de Eusébio na Selecção Nacional ficou marcada por um dos maiores fracassos da equipa das quinas - derrota por 2-4 no Luxemburgo. Mais marcante ainda pelo facto de o Benfica ter acabado de se titular como campeão da Europa.

Na passada semana falei aqui de um dos episódios mais curiosos da história da Selecção Nacional, o famoso «Jogo da Madeira» disputada em Wembley.
Hoje recordo outro. O da estreia de Eusébio pela Selecção Nacional, precisamente antes da ida a Londres, e que tive a oportunidade de deixar registado no livro «Cinco Escudos Azuis».
Estamos, portanto, de novo em 1962.
No dia 31 de Maio, o Benfica sagrava-se campeão europeu, vencendo o Barcelona (3-2) e dando ao Futebol português o momento mais retumbante da sua História. Cinco dias depois, no Jamor, Portugal perdia com a Argentina (0-2, golos de Pando e da «estrela» Sanfilippo) num jogo em que mais parecia, como escreveu Vítor Santos em «A Bola», que a Selecção Nacional «arrotava a champanhe».
Armando Ferreira, o seleccionador, não resistiu à tentação de jogar com seis Benfiquistas na equipa principal - Costa Pereira, Germano, Santana, Águas, Coluna e Cavém (na segunda parte seriam sete, com José Augusto a entrar para o lugar de Yaúca) - e com o decorrer do encontro, o desgaste da duríssima final de Berna entrava pelos olhos dentro. «Isto tem sido de arrasar!», queixava-se Germano, definitivamente alcandorado a grande defesa-central do Futebol mundial. Os argentinos não lhes poupavam elogios: «Germano é maravilhoso! Onde é que o foram buscar?», perguntava o guarda-redes Roma.
Para a campanha de Outubro, com os jogos no Luxemburgo e em Wembley, é chamado à função de seleccionador Fernando Peyroteo.
Teria tempo, ao longo do resto da sua vida, de se arrepender de ter aceite o cargo. Os seus problemas começaram ainda antes da deslocação à «Cidade das Fadas», ou «Cidade de Opereta», como os jornais da época gostavam de se referir ao Luxemburgo, glosando a arquitectura barroca do Grão-Ducado da família de Nassau. Ao vetar a data de 18 de Outubro para a realização do Áustria de Viena-Benfica para a Taça dos Campeões (nesse tempo as datas dos jogos internacionais ainda se combinavam e dependiam da autorização das federações e, por conseguinte, dos seleccionadores), Peyroteo «comprou» desde logo uma guerra com os «encarnados» que, assoberbados por convites para jogar no estrangeiro, tinham problemas sérios para estabelecer um calendário. Além disso, a sua convocatória não foi isenta de polémica. Peyroteo seleccionava como jogava: a direito, duro, mas correcto. Deixou claro que alguns jogadores considerados indiscutíveis não seriam chamados por via da sua quebra de forma. José Augusto, Santana e Fernando Mendes, por exemplo. Para compensar, contava agora com a mais refulgente aparição do Futebol português, o jovem Eusébio que, com apenas 19 anos, deixava claro que se iria transformar rapidamente num dos melhores jogadores do Mundo.

A maior «barraca» da Selecção Nacional
Com a vitória da Inglaterra, em Wembley, frente a esse mesmo Luxemburgo (4-1), Portugal estava agora obrigado a ganhar aos luxemburgueses e a empatar, pelo menos, em Londres, para obrigar os britânicos a um terceiro jogo em terreno neutro. Mas a viagem à «Cidade das Fadas» foi uma espécie de viagem ao inferno. Uma derrota dolorosa por 2-4, deitava por terra qualquer réstia de aspirações de nos qualificarmos para o Mundial do Chile. A selecção de Peyroteo era quase de «risca ao meio». Isto é, jogava com uma defesa à base do Sporting e com um ataque à base do Benfica. Ora veja-se: Costa Pereira (Benfica); Lino (Sporting), Morato (Sporting), Lúcio (Sporting) e Hilário (Sporting); Pérides (Sporting) e Coluna (Benfica); Yaúca (Belenenses), Eusébio (Benfica), Águas (Benfica) e Cavém (Benfica). Um 4.2.4 bem explícito, seguindo o sistema em voga, imposto de forma definitiva pelo Brasil de Vicente Feola, em 1958. Vestida à moda de Espanha, camisola grená e calções azuis, como era habitual nessa altura, Portugal mergulhou mansamente no naufrágio. Os defesas não se entendiam uns com os outros, não acudiam às dobras, atropelavam-se desajeitadamente e facilitavam as rápidas incursões dos adversários. O ataque não descobria a forma de ultrapassar a feroz defesa do Luxemburgo. Coluna jogava excessivamente recuado. Cavém estava abandonado no flanco esquerdo; Águas entalado entre dois centrais e Eusébio não conseguia fornecer jogo ao seu «capitão» no jogo amaldiçoado da sua estreia com as 'quinas' ao peito.
A desvantagem de 0-1 com que foi para o intervalo era surpreendente mas compreensível. O início do segundo tempo foi confrangedor: aos 53 minutos, Schmidt, que já tinha apontado o primeiro golo, fez o 2-0; três minutos depois, fez o seu «hat-trick», aproveitando um pontapé de baliza de Costa Pereira dirigido aos pés de Vandivint que isolou de imediato o seu avançado. Os portugueses não queriam acreditar no que lhes estava a acontecer. E só então esboçaram finalmente uma reacção, mais ditada pelo orgulhoso do que pela arte de um jogo colectivo.
A oito minutos do fim, Eusébio arranca pela direita, junto à linha lateral, e vai levando a bola para o centro, driblando primeiro um, depois outro e ainda outro adversário. O remate de pé esquerdo foi indefensável. Porque parecia ter força para ainda encostar às cordas o seu frágil opositor. Mas, dois minutos depois, Hoffmann faz o 4-1. Novo pontapé de longe, de pé esquerdo, de Yaúca, reduziu a desvantagem no último minuto. A derrota envergonhava uma selecção que parecia interromper, assim, o seu lento progresso na íngreme subida da montanha do prestígio internacional. Peyroteo, lançava, apesar de tudo, um grito de revolta: «Vamos ganhar em Inglaterra!» Ninguém o levava a sério. Os ingleses espantavam-se: «Ninguém acreditava que pudesse acontecer. Mas aconteceu! O desfecho deste encontro é um dos maiores choques do Futebol europeu e mundial!», escreveu Peter Lorenzo, enviado-especial do «Daily Herald». E acrescentava: «Eusébio, o novo jogador-maravilha dos campeões europeus, começou a jogar como um mestre e marcou um soberbo golo de vinte e cinco metros». A paixão inglesa por Eusébio começava aí. Durará, talvez, para sempre. Os luxemburgueses rejubilavam: «Este foi o mais belo dia do Futebol do Luxemburgo!», titulava o «La Meuse». E seguia no mesmo tom: «Batemos uma autêntica equipa nacional, uma equipa nacional, uma equipa que os melhores temem e que fez há bem pouco 'match' nulo com a Inglaterra. Uma equipa que tem nas suas fileiras cinco campeões da Europa e não tinha perdido ainda a esperança de se deslocar ao Chile. E foi precisamente esse aspecto que fez desta jornada a mais bela do nosso Futebol: batemos Portugal num encontro oficial e não num desses desafios amigáveis sem grande importância. Este êxito foi conquistado pelos nossos representantes com toda a regularidade, sem se aproveitarem de acidentes nem de incidentes»."

Afonso de Melo, in O Benfica



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