Coluna: Faltou um poeta que o escrevesse...
Benfica

Coluna: Faltou um poeta que o escrevesse...


"Memoria de uma entrevista longa, longa com o «capitão». Falou de tudo: do Benfica, da Selecção, da PIDE até. Sempre naquele ritmo morno de andar na areia, como escreveu uma vez João Cabral de Melo Neto.

lá vão uns anos. Em Maputo chovia tanto, em Lisboa nem por isso. A água tomou conta das ruas e invadiu as casas e começou a matar as pessoas. Dizia quem lá estava que não era possível descrever a fúria inexplicável de uma chuva que engoliu as estradas, os caminhos e os destinos de muitos moçambicanos.
Mário Coluna veio a Lisboa, longe da sua cidade alagada. Combinámos encontro ao princípio da tarde. Tudo nele era de lentidão solene. Desde o passo com que entrou no «hall» do Hotel Berna, onde eu o esperava, até à melopeia das palavras com que contou as suas histórias. Mas há nessa lentidão a arte tecedora das aranhas e, não tardou muito, fomos ficando presos às suas palavras e aos seus gestos.
Dele poderia ter escrito João Cabral de Melo Neto:
«Ritmo morno, de andar na areia
de água doente de alagados
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário».
Não escreveu. Ou melhor, escreveu sim, mas de Ademir da Guia, o central brasileiro a quem chamavam a Enciclopédia.
Falámos de tudo. Era uma entrevista de fôlego para o jornal no qual trabalhava na altura. De como chegou a Lisboa, em 1954, aos dezanove anos, e de como chegou, viu e venceu. «Não gosto de dizer isso, pode parecer imodéstia, mas foi o que aconteceu, no fundo. O Benfica já não era Campeão há três ou quatro anos, e logo na primeira época em que joguei fomos campeões, ganhámos a Taça, fui 'internacional' A, B e militar. Como vê, as minhas memórias são boas desde início, o futebol foi um mundo feliz para mim».
Mário Coluna não foi Campeão do Mundo. Mas só esse título terá faltado a uma carreira brilhante. «Fui campeão europeu com o Benfica, por duas vezes, a primeira naquele célebre jogo de Berna em que ganhámos ao Barcelona por 3-2, marquei o golo decisivo, o terceiro, ainda por cima num pontapé de longe, bonito, surpreendente». A final da sorte, chamaram-lhe alguns, recordando-se da bola que viajou sobre a linha de baliza de Costa Pereira, a bater primeiro num poste e depois no outro, para sair calmamente fazendo negaças aos jogadores espanhóis e abrindo sorrisos na cara dos portugueses. «Sorte? Porquê sorte? O poste estava lá e, que eu saiba, no poste não é golo. Ninguém ganha a sorte grande sem comprar a cautela, pois não? Por que não falam de sorte no jogo contra o Real Madrid? Também estivemos a perder por 2-0. Por que não falam de sorte no Portugal-Coreia de 1966? Estivemos a perder por 3-0. Éramos melhores, ganhámos. Não foi questão de sorte».

Dinheiro, Pelé, a PIDE e os heróis
FALÁMOS durante horas desses momentos felizes da sua vida e do futebol em Portugal. Ainda não era tão velho como agora deixou definitivamente de o ser e irradiava uma satisfação serena de quem soube encarar a passagem do Tempo sem azedume. Ele era o «capitão». Do Benfica, da selecção. «Nessa altura os treinadores não podiam estar à beira do relvado a dar ordens, os árbitros não deixavam. Por isso, os 'capitães' eram uma espécie de treinadores dentro do campo. Foi o que eu fui. Dou-lhe um exemplo: em 66, naquele lance entre o Morais e o Pelé, alguns dos nossos companheiros de equipa rodearam o Morais e foram-lhe dizendo - 'é pá!, vê se tens mais cuidado, e coisas do género'. Eu então puxei-o para o lado e disse-lhe: 'atenção! Aqui dentro do campo quem manda sou eu! Continua a jogar como estavas, durinho, que o Pelé, lá por ser o Pelé, não tem tratamento especial'». Uma ideia que contrariava a de outra figura do futebol português dos anos 60, Fernando Riera, que dizia: «marcar o Pelé homem a homem é um crime lesa-futebol». E o Coluna: «Ele dizia isso, pois dizia. E por causa do Riera, nós, que tínahmos feito um bom resultado no Brasil, para a Taça Intercontinental, perdendo por 3-2, levámos uma goleada em Lisboa, com o Pelé, que era um jogador impressionante, a fazer o que queria da nossa defesa».
Ao vê-lo, encanecido, as imagens assaltaram-se a memória. Numa delas, Coluna de braços atrás das costas, cabeça ligeiramente curvada, fala respeitosamente para um árbitro. Dizia-se que, a despeitoda postura respeitadora, Mário Coluna dizia das boas aos árbitros. O antigo Seleccionador Nacional, Manuel da Luz Afonso, confessou-me certa vez que Coluna tinha sido o único jogador que nunca tivera que multar. Ele ria-se. «Nunca levei uma multa, é bem verdade! Porque eu achava que devia ser um exemplo para os outros. Era, afinal, o responsável pela equipa dentro do campo. E falava com os árbitros nessa condição. Falava-lhes com respeito mas dizia-lhes o que pensava dos lances e, se necessário, discordava deles».
As memórias encaixam umas nas outras como peças de um brinquedo para crianças pequenas. Ritmos, imagens, emoções. «Fui, felizmente, capaz de pensar na matemática do futuro. Investi o que ganhei em Moçambique. Não ganhei muito, podia ter ganho mais se o Benfica me tivesse deixado sair para o Roma, no mesmo ano em que o Eusébio teve um convite para o Inter, mas os tempos eram outros, ficaríamos a saber mais tarde que tinha sido o Salazar a proibir a nossa saída para o estrangeiro». O momento de falar de política, de saber a verdade sobre a perseguição movida pela PIDE, da autenticidade das suas simpatias pelos movimentos pró-independentistas. «Essa história da PIDE tem qu ver com uma viagem a Praga com a Selecção. Apareceram-nos no hotel alguns estudantes angolanos, pediram-nos convites para o jogo, nós oferecemos os nossos, nada de mais. Mas, depois, chegados a Lisboa, recebi um convocatória para ir à PIDE. Fui. O inspector que me atendeu era do Benfica e um admirador meu. Expliquei-lhe o que se passara e ele disse-me: 'você teve uma grande sorte por estar eu aqui. Com outro colega qualquer já estaria preso.' Parece que havia gente da PIDE infiltrada entre os estudantes e que alguns deles era dos movimentos pré-independência. Nunca mais me aborreceram depois disso, mas estou convencido de que ficaram de olho em mim».
Ali, na minha frente, ao mesmo tempo que bebia tranquilamente o seu 'whisky' e esperava pela hora de apanhar o avião que o levaria de volta a Maputo falou do dia em que o Atlético furou o Apartheid e jogou em Joanesburgo com um jogador negro, o inesquecível Ben David; falou de José Travassos, de Pelé, de Di Stefano e de Masopust, do argentino Rattin e do guarda-redes Yashin. Falou devagar, porque esse é o seu ritmo
«O ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro
impondo-lhe o que ele deseja
mandado nele, apodrecendo-o».
Se Ademir da Guia era assim, Mário Coluna não terá sido muito diferente. Faltou-lhe apenas um poeta que o escrevesse."

Afonso de Melo, in O Benfica



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